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OPINIÃO

Timor-Leste recusa navios patrulha australianos: prudência técnica ou afirmação estratégica?

Timor-Leste recusa navios patrulha australianos: prudência técnica ou afirmação estratégica?

António Sampaio, ex-jornalista da Lusa. Foto da Tatoli/Egas Cristovão.

Análise por António Sampaio

 

Antecedentes

Em 2014, quando a Austrália lançou o Pacific Patrol Boat Replacement Project, tornava-se cada vez mais evidente a importância geoestratégica dos países insulares do Pacífico na nova arquitetura de segurança da região. O projeto surgia como resposta direta à crescente pressão geopolítica e ambiental na região, sobretudo no que diz respeito à vigilância marítima, combate à pesca ilegal e projeção de influência estratégica. Na sua génese, representa uma extensão de uma iniciativa inicial de 1987, quando Camberra forneceu 22 navios da classe Pacific a 12 nações insulares. Um quarto de século depois, e face à obsolescência dessa frota e a necessidade de renovar a cooperação regional, o programa foi relançado com uma nova geração de embarcações – os navios da classe Guardian – projetados para reforçar as capacidades marítimas de Estados com zonas económicas exclusivas extensas, mas sem meios adequados para as patrulhar.

Além do objetivo técnico, o programa incorpora motivações profundamente estratégicas e diplomáticas: num período marcado pelo avanço da presença chinesa nas águas do Pacífico Sul, a Austrália quis reafirmar a sua posição como parceiro de confiança e principal fornecedor de segurança regional. Ao oferecer navios modernos, com contratos de formação, manutenção e apoio logístico por 30 anos, Camberra pretendia também consolidar laços institucionais duradouros com governos, muitas vezes frágeis ou vulneráveis à influência de potências externas. Para Camberra, oferecer navios patrulha modernos aos vizinhos era um gesto de apoio, mas também um investimento em estabilidade e influência.

O programa tornou-se, assim, um instrumento de diplomacia de defesa e um pilar central da política externa australiana no Pacífico. Até este ano, o programa já entregou navios da classe Guardian a diversos países, incluindo Papua Nova Guiné, Fiji, Samoa, Tonga, Tuvalu, Palau, Micronésia, Ilhas Salomão, Kiribati, Ilhas Marshall e Vanuatu. A maioria dessas embarcações está atualmente em operação, embora vários países tenham reportado falhas técnicas desde 2022, incluindo fissuras estruturais e problemas de ventilação. Apesar disso, muitos Estados continuam a beneficiar do programa, que inclui também a reabilitação de infraestruturas portuárias, contratos de formação e assistência técnica australiana permanente.

Timor-Leste também estava abrangido pelo programa, com Camberra a anunciar em 2018 a oferta de dois Guardian a Díli. O assunto tem estado na agenda bilateral desde 2013 quando Timor-Leste falou com a Austrália relativamente à possibilidade de adesão ao programa. Mais tarde, o V Governo, liderado por Xanana Gusmão, acabou por decidir adiar uma decisão final sobre o programa “até se resolver a questão da fronteira marítima” entre os dois países. De visita a Perth, na Austrália Ocidental, em novembro de 2017, o então primeiro-ministro Mari Alkatiri, renovou o interesse de adesão ao programa, vincando que era necessário “ver as condições, proceder a uma detalhada análise técnica”.

Em 2023, depois de várias negociações e do arranque do programa de formação de elementos do componente naval das F-FDTL, em preparação para a entrega dos dois navios, a ministra australiana dos Negócios Estrangeiros, Penny Wong, confirmou que a entrega ocorreria “até meados de 2024”. Contudo, em janeiro de 2024, o Ministro da Indústria da Defesa da Austrália anunciou um novo adiamento para maio de 2024, justificando-se com questões logísticas e finalizações técnicas nos estaleiros de Henderson. A primeira embarcação, o NRTL Aitana, foi concluída no final de 2023 e ficou pronta para entrega formal em meados de 2024. Mas, de forma inesperada para alguns observadores internacionais, Timor-Leste recusou recebê-la.

A decisão, oficialmente justificada por limitações infraestruturais e dúvidas sobre a adequação dos navios às águas timorenses, suscitou debates sobre as reais prioridades marítimas do país, os seus objetivos de soberania e o posicionamento de Díli, “sem aliados, sem inimigos”, como disse o primeiro-ministro Xanana Gusmão, procurando vincar uma agenda de paz “com todos os amigos”.

Navios com pedigree… mas também com fissuras

Os navios da classe Guardian são, à primeira vista, ativos militares robustos: com 39,5 metros de comprimento, autonomia de até 3 000 milhas náuticas, capacidade para operar em alto-mar e projetados para durar 30 anos com apoio técnico australiano. Em julho de 2022, o jornal The Guardian revelou que múltiplos problemas técnicos haviam sido identificados: “Fissuras estruturais entre o motor e a caixa de velocidades, sistemas de ventilação ineficientes em zonas médicas e deteção de monóxido de carbono em compartimentos fechados”. O construtor Austal confirmou os problemas à ABC News, reconhecendo que os defeitos “afetam a operacionalidade e requerem intervenções de correção de médio prazo”. A divulgação pública dos incidentes não foi pacífica: em fevereiro de 2023, documentos revelados pelo The Guardian mostraram que o Governo australiano decidiu divulgar publicamente informações sobre os problemas, apesar de um aviso das autoridades de defesa de que isso poderia prejudicar relações regionais importantes ou de que as referências públicas à situação “poderia ser explorada por redes criminosas ou atores malignos”.

A recusa timorense

Em janeiro de 2024, durante uma visita a Díli, o então ministro de Defesa australiano, Pat Conroy, confirmou novo adiamento, explicando que a entrega do primeiro dos dois navios ocorreria em maio de 2024. Em março, Camberra confirma a entrega dos dois navios em 2024. Mas isso acabou por nunca ocorrer, ficando ‘suspensa’. Em junho a organização Fundasaun Mahein publica um artigo sobre o assunto, manifestando surpresa e considerando que a “suspensão da entrega prejudica a segurança nacional”. Dois meses depois, em setembro de 2024, a posição de Timor-Leste foi formalizada, com o Ministério da Defesa a anunciar que, por razões operacionais, não podia receber o navio.

Fontes do setor da Defesa timorense vincam que a decisão se prende com os objetivos mais amplos da estratégia para as suas forças de Defesa, mas, ao mesmo tempo, com a adequação dos navios às necessidades de patrulhamento das suas águas, especialmente na costa sul. Essa região, entre Betano, Suai e Viqueque, é conhecida pelas suas águas agitadas, ausência de portos naturais profundos e longas distâncias sem apoio logístico. A operação eficiente de navios-patrulha nesse espaço, considera Díli, exige autonomia reforçada, resistência estrutural e capacidade de resposta médica e mecânica a bordo. Em Díli questiona-se, por exemplo, se os navios permitem permanência em alto-mar durante períodos prolongados, com “capacidade de autossuficiência e resistência operacional, sem precisar atracar todas as semanas”. Sucessivos atrasos na preparação do Porto de Hera, na Costa Norte, – onde os navios deveriam atracar, ampliou receios sobre a capacidade de acolhimento dos Guardian. Timor-Leste não dispõe ainda de docas secas adequadas, oficinas de manutenção ou sistemas de fornecimento de peças sobressalentes, o que obrigaria a contínuas deslocações à Austrália para revisão — um cenário considerado insustentável.

O Porto de Hera: promessa inacabada

O Porto Naval de Hera foi planeado como a base operacional principal da Marinha timorense. A promessa da sua modernização, como parte do pacote doado pela Austrália, incluía a reabilitação de cais com capacidade de atracação para embarcações de até 40 metros, a construção de oficinas de manutenção e instalações logísticas, e a formação de pessoal de engenharia naval. Sem a obra concluída, Hera continua sem condições técnicas para acolher, reabastecer ou reparar as Guardian, tornando a sua operação ainda mais limitada.

Neste quadro, os argumentos da Defesa vincam opções alternativas, incluindo a eventual aquisição de um navio com maiores capacidades de atuação em alto-mar, maior autonomia e, como tal, maior eficácia no necessário patrulhamento das águas timorenses. São evidentes, por exemplo, sinais de elevados índices de pesca ilegal nas águas a sul, pondo em risco os recursos nacionais e o próprio equilíbrio ambiental, especialmente num quadro em que a Economia Azul é vincada como uma das prioridades nacionais.

A recusa dos navios tem suscitado debates sobre o que pode representar em termos da postura geopolítica timorense. Nas últimas décadas Díli tem intensificado relações com a China, Coreia do Sul, Japão e Indonésia, procurando equilibrar estes laços com o seu eixo histórico, Austrália e Portugal. Um esforço de Timor-Leste de reafirmar que não pretende assumir automatismos estratégicos nem relações assimétricas, vincando o eixo central da sua política: boas relações com todos.

Paralelamente, insiste a Defesa, a criação de uma Marinha nacional plenamente funcional – mesmo que modesta – exige muito mais do que equipamentos: requer doutrina, infraestrutura, recursos humanos e soberania nas decisões. Que podem incluir elementos multifacetados: uma combinação de um navio de maior dimensão para operação em mar-alto, com navios menores, mais ágeis e fáceis de manter para as operações costeiras, cooperação regional na segurança das águas, drones navais e sistemas de vigilância costeira e, necessariamente, uma formação ampla de todos os quadros para a Marinha nacional, desde engenheiros navais a quadros operacionais.

Daí que, em Díli, a posição representa uma afirmação institucional. Timor-Leste não está a rejeitar ajuda, está a rejeitar dependência. Vincando que não quer apenas navios, mas quer uma Marinha, com tudo o que isso implica em termos de responsabilidade, autonomia e estratégia. Ao exigir condições para operar os seus próprios meios, Timor-Leste está a demonstrar que soberania não se mede apenas por bandeiras içadas em mastros — mas pela capacidade de tomar decisões com base nos interesses nacionais, mesmo quando isso contraria as expectativas dos seus parceiros.

FIM

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